12 dezembro 2007

A zungueira e a “poética” da sobrevivência






“A preocupação social manifesta-se atravês do papel do escritor,
também na senda daqueles escritores “classicos”angolanos que tematizavam
as injustiças e os quotidianos deLuanda na época colonial”
Ana Lúcia de Sá


Aristóteles defendendo a literatura contra a condenação de Platão, mostrou que o conceito de mímese, formaliza uma relação com a realidade. A concepção gnosiológica da arte faz produzir o prazer pelo reconhecimento e pela compreenção da realidade representada (Cesare Sagre 1999).
Esta imitação remete-nos na dura realidade da questão do género, sendo o feminino o que mais sofre. Assim é que nossos poetas sempre pretenderam pintar o drama social da mulher. Tem sido uma tomada de consciência da questão da mulher, mais propriamente da mulher zungueira (a vendedora ambulante que mercadeja nas ruas, sendo zungueira (o), uma deturpação do termo kimbundu nzunga, resultado da forma verbal kuzunga, circular, rodear). Hoje notamos esta zunga a pintar poesia realista, uma “poetica”de sobrevivência nas ruas de Luanda.
Agostinho Neto, poeta classico que estimo, já escrevera o drama da mulher zungueira, outrora quitandeira:
(...) Muito Sol/ e a quitandeira à sombra/ da mulemba. // (...) compra laranja doce/ compra também o amargo/ desta tortura/ da vida sem vida. // (...) Até mesmo a minha dor/ e a poesia dos meus seios nus/ eu entreguei-as aos poetas. (in Sagrada Esperança)
E os poetas recebem esta poesia denunciando o sofrimento, o “lamento da zungueira”, tal como lemos em “A boca árida da Kyanda” de Chó do Guri, mulher poeta e sobretudo mãe.
Porquê me fazes destino/ triste e sem abrigo/ (...) ngana nzambi tatê/ venho de longe/ da escuridão/ de uma longa estrada/ sem pão// Por andar sem gozo/ inama yami wadifangana mbonzo.
É de facto um sofrer que incha os pés parecendo batatas pois ela “vem de recantos recônditos da cidade cruel”. E José Luís Mendonça é outro poeta que não se alheiou a esta “poetica” de sobrevivência da mulher zungueira que procura o sustento para seus rebentos. Ele desenhou os versos abaixo:
“Prenhes candeeiros a petróleo/ à mesa do dia as quitandeiras ardem/ mestruação de pássaro entre dentes/ é chibata é chibata fresquinha olha/ carapau minha senhora eis aqui/ um país que emerge nos bolsos de pedra/ o escalpe luminoso dos navios. (in Respirar as mãos na pedra)
O drama social da mulher zungueira é enorme e pinta poesia melancólica para que os seus não padeçam e, Nguimba Ngola (autor destas linhas), canta para esta “Amiga da zunga” que se levanta quando os “raios do sol ainda a espreguiçarem-se”. Mesmo com os “lábios ressequidos pela fome que lhe assalta o estômago” ela corre “cansada/suada/a descer a calçada” ante o olhar humilhante daqueles que lhe devem protecção.
“Volta a cubata com os parcos proventos do dia/ faz o comer para o insensível dono que a quer “comer”de qualquer jeito” e sente na alma e no espírito a violência do marido e até mesmo a morte ingrata como a realidade hoje testemunha permitindo a mímese ao poeta.
“Fortaleça-te Deus oh amiga da zunga” e desejo-te um Feliz Natal e Ano Novo Próspero. (Leia-se o poema “Amiga da zunga” no livro Controverso de Kardo Bestilo).


Nguimba Ngola
Mulemba waxa Ngola, aos 12/12/2007 00:57’
nguimbangola@gmail.com

A dimensão cultural de Jorge Macedo




Uma singela homenagem ao poeta, ficcionista e ensaísta inquestionável


“...Nós os angolanos temos razões maiores para
nos orgulharmos da dimensão africana da nossa
cultura, que se tornou universal...”(Macedo 2006)


No longíquo ano de 1941, nascia na terra da palanca negra e gigante, Malange, em 16 de Outubro, um menino que veio a tornar-se num homem de grande dimensão cultural!
Segundo H.G. Wells, a grandeza de um homem pode ser medida por ‘aquilo que ele deixa para crescer’. A vida e obra de Macedo confere-lhe uma grandeza no panorama cultural angolano e, certamente, seus ensinamentos, conceitos e filosofia tem marcado um tempo.
O autor de Itetembu (1966) teve como primeira actividade profissional de regente escolar, e dai passou para a carreira administrativa. Homem de multifacética formação, fez os estudos primários e secundários na sua terra natal, frequentou os seminários maior e menor de Luanda e Malange, onde estudou filosofia que de certa forma lhe proporcionou um horizonte amplo no seu pensamento cultural. J.Macedo interessou-se pela música, e estudou-a na Academia de Música de Luanda. É também diplomado em Etnomusicologia na Universidade de Kinshasa (UNAZA).
Durante o período colonial, o nosso homenageado, foi mestre de coros, exerceu vários cargos de docência. Ao longo dos anos, exerceu também vários cargos oficiais e muitos destes na área cultural, nomeadamente director da Direcção Nacional de Arte, Director Nacional da Escola de Música, do Instituto de Línguas Nacionais, Administrador do Centro Internacional de Civilizações Bantu e foi Jornalista em Lisboa onde dirigiu a Revista Afro-Letras da Casa de Angola em Portugal.
J. Macedo estreou-se muito cedo no labor literário. Luís Kandjimbo escreve na sua página de internet, Verbetes de escritores angolanos, “Este autor pode ser considerado como sendo um dos raros poetas e ficcionistas que, pela estreia precoce à semelhança de Mário António, assinala com a sua obra a transição de gerações, neste caso da geração de 60 a 70. E tal facto pode estar na origem da sua propensão para o exercício dos vários géneros literários e associações a outras manifestações artísticas...”
Foi em 1966 que lança o livro acima citado, Itetembu. Segue-se na sua safra quatro anos depois, As Mulheres e no ano seguinte, 1971, Pai Ramos. Seguiram-se ainda em poesia, Irmã humanidade (1973), Clima do Povo (1977) que abaixo vai um extrato do poema “ Nós fomos” deste mesmo livro:

“nos ausentaram da palavra
Feriram nossa muxima
Voz nossa desabitada
No código da alienação
E no rosa do tal mapa-rosa
Kissunji gegráfico nós fomos”

Nota-se a recorrência aos termos kimbundo, muxima, kissunji, valorizando de tal modo a nossa língua. E nesta época, quando começa a escrever prosa, Jorge Macedo conta “Iniciei-me em prosa no jornal do Lobito em 1971. Carlos Ervedosa, que orientava a página de Artes e Letras do matutino Província de Angola, convidou-me a publicar os meus contos neste jornal luandense, o que fiz. Mas como eu usava discurso revolucionário, misto de português e termos de kimbundu, uma vez a censura mandou parar a saída do jornal por isso, pois o meu angolanoguês constituia transgressão às normas da correcção da língua...” (MACEDO 2004, contra-capa).
Sua vasta obra em prosa inclui os títulos, Gente do meu bairro (1977), Geografia da coragem (1978), O Menino de Olhos de Bimba (2005) As aventuras de Jójó um excelente conto infanto juvenil, entre outros.
Jorge Macedo escreve com a alma e traz a ribalta um realismo puramente africano e evocando nossas deidades africanas, como por exemplo a Muxima (NOSSA SANTA NEGRA). Conta-nos também histórias da época colonial em que nossos irmãos angolanos eram desterrados para outras paragens. Leia-se alguns extratos no conto Monami (histórias de ssenta e um):

“Mamã não dorme. Não encontra onde esconder-me, pró sessenta e um não me levar. Etu tuambundu a gente frequenta a escola ao contrário. Quinto ano pra não ir no contrato... pra não ir em S. Tomé em exílio monangamba... Mas (uaué) o SESSENTA E UM hoje, raiva da PIDE bate à porta e você, quinto ano, olho de ver injustiça que caputo faz contra tua raça, é levado no JEEP e aí onde você foi... nunca mais volta...
- MAMÃ CORAGEM, DEUS EXISTE! REZA! UM DIA NOSSA RAÇA SERÁ LIVRE!...”

Jorge Macedo, continua a semear o conhecimento, que emana da sua vasta bagagem cultural. Escreve ensaios profundos que lhe confere uma grande dimensão de homem de cultura como já dissemos no início do nosso macro texto. Exortamos a que se leiam os seguintes títulos; Literatura angolana e texto literário e Poéticas na Literatura Angolana, ambos lançados em 1989. Leia-se ainda, Poesia angolana 1975-2005 (2003) e o mais recente ensaio A Dimensão Africana da Cultura Angolana (2006) de 154 páginas contendo vinte e cinco ricos textos e mais dois em anexo, que abordam vários temas como: a questão dos assimilados, a poligamia em Angola a filosofia bantu a música e ainda, entre outros, o poder tradicional. Abaixo alguns extratos:

“A convivência dos angolanos com a cultura luso-europeia deu lugar a um extrato social culturalmente europeizado, mercê da instituição colonial do estatuto de assimilação. Os assimilados eram os africanos que para conquistar o direito à cidadania e suas mordomias, nomeadamente o acesso a cargos públicos auxiliares, nunca de soberania, eram obrigados a abandonar usos e costumes de pais e avós. quando da independência a população angolana de assimilados trasnferiu-se da administração pública colonial para a nacional angolana. Do ponto de vista cultural este extracto especial e sui generis continuou a guiar-se pelo ethos luso-europeu.” Em relação a filosofia bantu Macedo escreve, “O “campo” da filosofia africana em Angola abrange tanto a dos Banto locais e não Bantos... Os antropólogos coloniais não reconheceram quase, a dimensão da racionalidade na pessoa do africano, por não dominarem a escrita, mas por se conduzirem através dos ditames de sua civilização oral, milenar... Os Bantos elegeram o “cágado” para simbolizar a sabedoria”. Sobre a poligamia em Angola, Macedo escreve que ela é uma instituição conjugal legitimada pelo direito consuetudinário banto. O muenexi, entre os povos kimbundu, ou chefe supremo, o soba, possuia três mulheres, a Ngana Vale, que era a mulher chefe da comunidade de esposas, a Samba-Nyanga, que se encarregava dos trabalhos domésticos da casa-mãe e a Samba-Njila que acompanhava o marido em suas viagens. Os portugueses desrespeitaram estes ditames culturais dos africanos e trataram as mulheres dos angolanos como não sendo legítimas, mas como concubinas. No entanto o regime colonial destituido em 1975, é que é a responsável pelas poligamias geradas no seio da comunidade africana, pois eles não conseguiram erradicar o casamento legítimo e plural banto, geraram a poligamia de facto e não de jure, praticada à calada da noite quer por portuguese, quer por africanos europeizados, os assimilados.
Jomo Fortunato, um dos poucos críticos literários da nossa praça tal como o nosso homenageado, escreve, ‘importa referir que uma sociedade, que se pretende de paz e harmonia, e que respeita, legitima e promove a diversidade de culturas, em presença, deve propor uma relação de diálogo da sua personalidade cultural com o mundo. Contudo e é o que se pode depreender do teor da generalidade dos textos da dimensão africana da cultura angolana, de Jorge Macedo – é imperioso ser africano, antes de se ser universal’ .
É de facto um livro que preenche ‘um vazio no domínio da teorização do fenómeno cultural angolano e ao nível da reflexão de tipo endógeno, partindo dos princípios enunciados pelos arautos do nacionalismo angolano dos quais se destaca Agostinho Neto’ arremata Jomo Fortunato in Vida Cultural, edição de 17 de Setembro de 2006.
A grandeza do estimado Jorge Macedo, é ainda notável ao predispor seu precioso tempo para passar sua experiência como homem de cultura. A luz do Núcleo dos estudos literários, que visa iniciar jovens no entendimento do fenómeno literário, o professor Macedo vai estimulando os jovens que têm frequentado suas aulas no Centro Kilamba. É de facto uma grande iniciativa a louvar ainda que, aos olhos de outros escritores (não sei se por inveja ou por que razão) essa iniciativa é falha pois não tem dado frutos. Há sim senhor frutos, tal é o caso do jovem Chaahoo Avô Ngola Avô que já se estreiou com o seu “Folhear o mar no ventre da saliva” um livro de poesia. E ainda surgirão outros que de quando a quando vão expondo seus textos nos espaços poéticos que alguns jornais vão disponibilizando. Espera-se que outros escritores também possam emprestar o seu saber, sua experiência, para que os jovens adquiram então a tão propalada qualidade que se diz estar a faltar nos jovens. Portanto, caros jovens, leiamos, leiamos, leiamos e continuemos a ler para nos aprimorarmos na arte de escrever e assim nos firmarmos no “mundo movediço e permanentemente escorregadio” que é a literatura no dizer do meu amigo Abreu Paxe.
Ao professor Macedo, só temos a te dizer PARABÉNS PARA VOCÊ e que o 16 de Outubro se repita por longos e felizes anos de vida, pois sempre anciaremos beber da tua seiva enriquecedora.




Nguimba Ngola,
Mulemba waxa Ngola, aos 24 de Outubro de 2007, 0:46’.
nguimbangola@gmail.com