Por Abreu Paxe
Falar de poesia continua a revelar-se um exercício complicado. Cada vez mais, ela torna-se mais indefinível, mais elástica e mais labiríntica, alicerçando recuos e avanços, apelando constantemente memórias. Ao abordarmos a poesia de Nguimba Ngola, reunida sob o título genérico de “Mátria”, levou-nos, a propósito do que colhemos, a questionarmo-nos mais uma vez sobre o que era poesia, evocando todos os sentidos que possuímos e que nos orientam para abordá-la, aliás, a própria poesia funda-se num permanente exercício de questionamentos, tanto na perspectiva de quem a produz, como de quem a aborda pela leitura. Tomo a leitura aqui de forma mais genérica. Dizia, questionávamo-nos pelo facto de sabermos à luz das teorias da literatura, mas propriamente da estética da recepção, que havia poesia de leitura e poesia de escrita. Então, trazendo ao de cima estas evidências, surge-nos a pergunta castradora. Onde situar a poesia que nos chegou à mão? Sabemos ainda que a poesia da leitura visa construir a dialéctica do desejo e do jogo que suscita a fruição. Uma poesia que provoca o leitor na sua função de produtor e de colector de signos que ele vai repescando ordinariamente e os combinar para formar sentido, mas do que lhe propondo uma poética de escrita, ao modo da poesia experimental, ou ainda, da concreta. Escrita predominantemente conotativa, é verdade, mas que desvia o leitor e dá-lhe a vil tentação de construir novos sentidos para as palavras, para privilegiar as relações entre o texto e o leitor, levando-o a ler e a reler, até a formação de uma constelação de significados probabilísticos e talvez efémeros, mas todos com alguns elementos de fruição e prazer.
O texto poético de Nguimba Ngola, pelas nossas constatações, está alicerçado num discurso fluido e marcantemente dialogal e, as vezes até, denotativo, nomeando referentes imediatos. Este tipo de poesia, embora com textos que pareçam dizer claramente tudo, esconde nas suas profundezas elementos que não revelam com evidência a informação dos signos. Estes ludibriam seguramente uma leitura linear, exigindo do leitor a necessária lupa para vigiar estes signos. E, é daí, onde vamos extrair esta constelação de significados, partindo do próprio título que também nos pareceu ser um forte indicador de leitura. A palavra “Mátria” que dá título ao poemário que estamos a apresentar, pelo seu significado, dá-nos a ideia da pátria vista do lado feminino. Ao pensarmos nisso, somos assaltados pela ideia da Mãe, que é África, o berço da humanidade, o que o poeta alude como “África mãe do cordão umbilical p.31”.
Pensamos também na mãe criada pelo poeta através das imagens e símbolos que dão força e expressão ao topos da nossa experiência comum, o que acontece, por exemplo, por um lado, com as zonas de fronteira que o poeta cria ao introduzir termos kimbudu em textos como, “(…)/no cume do cérebro do Ngana Kota(…)// Ndengue dilaji pinta o algodão(…)//Muloji a kime/Kine mo túbia(…)” em nas labaredas da incompreensão p.19, termos como Kúmbu em Malefícios do vício, p.20, termos como mulemba waxa ngola em Mulemba waxa Ngola p.35, “(…) (Ana mbwiji adila xinde dimoxi)” em Versos de perdão p.59, “(…) no estômago desgraçado de Nga Sessa(…)//Kudile mamã, não chores não oh minha mãe (…)// Dixibe ngó mamã(…), em Olhos brancos de maçaroca p.75, e, por outro, como a semiosfera criada com termos locais como “(…) tem valor guardar a mabanga do prazer/para salalé comer?(…) p29, “Kúmbu sujo”, “amiga da zunga//(…) quinda na cabeça//(…)zunga Luanda(…)// Amigo está aqui a fruta frutinha gostosa é cinco kwanzas p. 76”, “kissângua, cola, gegimbre de amor, p.80”, “salta golpes no cavalo azul e branco/ adormecido no trânsito, p.81”. O nosso poeta também fala do lar, das ruas, do musseque, de pai, do filho, de criança, de garrafinhas, de bica bidon, de cassumbula, do há dar aí revista e ninguém me revista, da escola, da unidade familiar, da noite, da pobreza, da riqueza, da dor, das calemas, das pétalas, do amor, da fauna, dos tambores, do kilimanjaro, do kissanje, de kalandula, do kalahari, do petróleo, de Shengor, de Neto, de Lumumba, de Cabral, de Mandela, de Darfur, de abutres, de liamba, de libanga, de malambas, de bangas, de Ngola Kiluanje kia samba, de Cacuaco, do Sambizanga, do Farol das Lagostas, do Cemitério do 14, da sanita madalena, de Ondjaki, de Kafukeno, de sereia, de sarjetas, de esgotos, de lixo, da mbanza Luanda, da vitória é certa, do Unguanhã, da mulemba, dos quibutos, do candongueiro, dos mendigos, dos desafortunados. Tudo isto, aparece deliberadamente exposto nos seus textos, para demonstrar o seu desejo de esculpir palavras: “meus olhos lambem a rubra poeira/transportadas nas vértebras da pobreza//meus olhos saboreiam o paladar lamacento/de ruas incontornáveis de miséria (…) //o brilho multicolor da imundice p.85”, “é a vida que se vive aos olhos da quianda p.84”, “(…) nas ruas da cidade na mocidade dos dias/ sem barulho dos canhões da outrora p.78”, “Quero a minha madrugada límpida e serena/devolvam-na já oh mestres da escuridão p.79”, por isso, “Meu sangue verseja/o recital do quotidiano (…)//(…) (n)o contraste da hierarquia/ na anarquia dos rendimentos (…)p.81”. Fica assim demonstrada a retórica alterneira a serviço de temas sociais e políticos.
Em suma, o registo estilístico, do texto que estamos a apresentar, pode ser inventariado a partir daquilo que Eco alude como o prototexto que nós percebemos a partir do metatexto, neste caso a poesia de Ngimba Ngola, ao vigiarmos a organização das séries temáticas tais como acima se aludiu e aproximá-las aos músicos como Rui Mingas e Teta Lando no texto da p.22 e com Valdemar Bastos no texto da p.76 e das Gingas em Mbanza Luanda. Mas também ao vigiarmos, em termos formais, as obras de semelhante organização temática: em Camões com o mote e a glosa, na sua poesia épica, a forma como o nosso poeta organiza os cinco momentos de que se compõe o livro, vem-nos isto à memória, em José da Silva Maia Ferreira, às dedicatórias e os ecos do romantismo, poesia relação social, daquela poesia ramo de flores para os amigos como escreveu Mário António, ilustrados nos textos do quarto momento, em Cordeiro da Mata com as características adivinhísticas na construção do texto, ilustrados nas páginas 70 e 71 em Chaves Douradas e Xé Félito respectivamente, em Viriato da Cruz no seu aspecto coloquial, em Agostinho Neto e tantos outros poetas, citados num outro texto nosso de apresentação, no hibridismo linguístico.
Os elementos acima apontados constituem-se em referências inequívocas da arte e poesia não só do mundo, no caso de Camões, como de Angola e com eles, ainda hoje, poetas como Nguimba Ngola vão mantendo recorrentes afectos e confirma o diálogo com a primeira fase de formação da nossa literatura e não só.Esta possibilidade de leitura que nos dá Nguimba Ngola faz com que o mesmo se institua como poeta e viva a poesia, como ele mesmo diz “Tateio no escuro dos versos/a escuridão poética é profunda/trilho forma e conteúdos dispersos/na hermenêutica da palavras//É um paradoxo/a cor da poesia/pintando na tela das correntes/quentes do dogmatismo coxo//Eu solto humildes versos/ magia das palavras/que brindam as pétalas da mente/com aprazíveis sinfonias//nego-me aos caprichos da tradição e da erudição/sigo livremente nos trilhos da criação/e costuro poemas de Paz e Amor e Consolo/na marginal da vida//é a poesia que faz a magia/nas pontas livres dos meus dedos// viva a poesia p.52”. Postos aqui e inventariando os elementos que proporcionaram a nossa caminhada que trouxe até cá, olhando ainda para este texto do poeta que vimos apresentar, concluímos que quando pensamos na poesia, ela fica cada vez mais longe de si mesmo e de nós. Por isso, fica a pergunta necessária para pensarmos na poesia, para pensarmos na literatura, para pensarmos na teoria literária. Qual é a pátria da poesia?
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