O facto de o cão ser considerado o melhor amigo do homem não se deve à sua ‘canina’ fidelidade. Na minha qualidade de homem de letras, de ‘bronzeador’ de palavras, segui o trilho de muitos cães, desde que atinei com a ponte do juízo, e cheguei à consoladora conclusão de que o homem aprecia a companhia do cão simplesmente porque o cão não fala. Como o cão não fala, não fofoca, não maldiz ninguém, não mete o bedelho onde não é chamado. Com essa característica que coloca o cão, em termos de virtudes, acima de muitos de nós, o homem sente-se à vontade ao lado do cão, ao ponto de com ele coabitar mesmo num restrito apartamento.
Talvez nós, africanos, estejamos agora a copiar hábitos ocidentais, porque, que eu me lembre, o ladrar do cão aqui em África sempre foi no quintal, o cão era mais para apoiar o caçador na mata ou guardar a copeira das galinhas e o que sempre vemos nas ruas de Luanda são cães sem trela, em bandos ou solitariamente enfezados, a dar largas à liberdade de fazer amor em plena via pública e à luz do dia. Mas cão dentro de casa é o que já começa a vislumbrar-se quando adentramos num ou noutro recinto de mosaico fresco e ar condicionado activo, com o tradicional sofá onde já o animal marcou o seu território.
Cão de apartamento dá trabalho. Exige banho na banheira, com sabonete, há quem lhe insira champô no pêlo nessa hora húmida e depois uma escovadela, até que o bicho, com direito a estojo de maquilhagem, passe a ladrar mais ‘soprano’ que os rafeiros. Cão de quintal, dos nossos cá da banda, contenta-se em comer os restos do funji ou da massa do jantar. Na Europa, ter cão na cidade dá ainda mais trabalho, porque lá o cão tem comida especial, que vem empacotada e às cores. Não é de estranhar – a não ser para os recém-chegados à estranja – pois, ver-nos a andar como anda a tropa especial em terreno minado, topando tudo quanto é mais colorido que o passeio, para não ter de levar um cheirete imundo para casa. Há mesmo vertentes excrementícias coloridas de um vermelho ocre ou de um amarelo-torrado, a contrastar com o cinza escuro do passeio, que fariam jus a qualquer vernissage de museu de arte. Gente há, mais atenta aos direitos das pessoas, que carregam consigo um saquinho de plástico para levantar do chão a miséria canina. Além do banho e do pitéu industrializado, o cão de apartamento exige ser levado a determinadas horas para a defecação diária. Se o dono não é disciplinado ou se não tem tempo, terá de contratar alguém e ele há especialistas treinados para levar o cão às esquinas das ruas ou aos contornos arredondados das árvores fazer as tais ‘necessidades maiores’.
Falando em direitos da pessoa, constatei também que os cães hoje em dia exibem um olhar tão humano que quase nos toca o coração. Eles não falam, mas falam sem falar. Daí talvez o homem estar tão afoito em defender esta determinada categoria de direitos que, não sendo humanos, serão, porventura, direitos de pessoa canina.
Por tudo isto e pela convivência milenar entre o cão e o homem, o cão passou a ser tido como o melhor amigo do homem e aqui entramos já na parte metafísica ou sentimental do problema. Trata-se de puro afecto entre o animal e o homem. Coisa que tem faltado em doses iguais entre o homem e a mulher, para cair no terreno mais restrito do género humano. Porque não haja dúvida que o homem devia ver na mulher o seu melhor amigo. Só que a mulher é um Homem e não pode viver calada como um cão. O homem teria de aprender a respeitar a palavra da mulher. É nessa falta de apreciação do valor (ou do verbo) da pessoa humana que muitos conflitos arrasadores abanam a cauda.
Indo para o terreno mais lato da espécie humana, falta, na verdade, afecto e a mesma consideração ‘canina’ entre um Homem e outro Homem. A tal ponto de o filósofo Thomas Hobbes classificar o Homem como o lobo do próprio Homem. Vejam a distância do cão para o lobo. Se o Homem conseguisse ser, ao menos, o cão do próprio Homem, a coisa seria diferente. A Humanidade seria outra. Uma Humanidade mais canina, isto é, amiga do Homem. Mas, talvez para alcançar este estado de amizade sem limites, de fidelidade canina, o homem devesse falar menos e dar mais de si aos outros. A modos de cão.
Fonte da imagem: podengocrioulo-podengobras.blogspot.com/
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