29 janeiro 2012

A poesia sorridente de Kiocamba Cassua

Eis o Kiocamba nosso kamba das lides poéticas nas noites levarteanas comunicando com sorrisos nos lábios o seu ser. Adilson do Kassequel, ou melhor Kiocamba Cassua, neto da avó Marcela Kiocamba convoca-nos hoje para sorrirmos juntos, para homenagearmos o seu primeiro rebento poético, afinal é só sorrirmos para nascer poesia.
O poeta foi ao “balaio das palavras e da mistura foi retirando uma a uma com cuidado, escolhendo as mais belas, as mais simples, aquelas que são fáceis de ser percebidas” e trazer-nos ao banquete poesia sorridente, seguindo o conselho da professora Gabriela Antunes que em memória ainda nos fala.
“Outros Sorrisos nos Nossos Lábios” está arrumado em 3 narrações. Sim isto mesmo narrativas, pois o poeta oferece-nos 50 textos poéticos como um conjunto de relatos temáticos em que personagens, espaço e tempo são a caracterização do social, onde encontramos angústias contemporâneas e anseios comuns. Na I narrativa, encontraremos vários sorrisos mas que, segundo Dalai Lama, conforme citado pelo autor “se quisermos mais sorrisos na vida, devemos criar condições para que eles apareçam”. Na II narração “os sorrisos são simplesmente cânticos de tristeza e os choros as originais melodias de óbito”. Na III e última narração “sorriram os sofrimentos/como se fossem alegrias. Só há silêncio e solidão à volta do poeta. É tudo? Não caros leitores, a obra em leitura afigura-se-nos vasta em temática pelo que acertadamente Penelas Santana descobre “que o autor almeja cantar e encantar com sorrisos diversos... desde a melancólica à doce, desde a vida à morte, desde a guerra à paz, desde o passado ao presente e até ao futuro... esperança viva!”
Relativamente a forma, os versos de Kiocamba são livres pois o modernismo poético permite esquemas métricos sem esquema fixo, para permitir a livre criação ao poeta o que não deve afugentar o apreciador de sonetos, dos tercectos e quadras e ou o amigo que só vê poesia com rimas. Kiocamba diz “... cá estou escrevendo poesia sem regra/ pensando em ti”. Mas veremos certamente alguns elementos desta natureza mais adiante. Antes de mergulhar nos “sorrisos mundiais” e coloridos de Kiocamba, permitam-me convidar algumas mentes que se dedicam a reflexão e subsidiaram pensamentos sobre o sorriso.
Bergson o filosófo, escreveu: “O riso é algo que irrompe num estrondo e vai retumbando como o trovão na montanha, num eco que, no entanto, não chega ao infinito”. O sorriso, pelo contrário é silencioso como chuva mansa que cai e fertiliza a terra ou como brisa suave que acaricia e refresca o rosto. Enquanto o riso é extroversão, o sorriso desvenda delicadamente o interior de quem sorri.
O poder do sorriso é grande, e saber sorrir é algo de muito importante. Antoine de Saint-Exupéry diz: “No momento em que sorrimos para alguém, descobrimo-lo como pessoa, e a resposta do seu sorriso quer dizer que nós também somos pessoa para ele”.
Podemos acrescentar que o sorriso é um dos sinais de comunicação com um sentido universal: ele expressa alegria, felicidade, afeição, gentileza. O sorriso traduz, geralmente, um estado de alma; é um convite a entrar na intimidade de alguém, a participar do que lhe vai no íntimo. O homem, dotado de inteligência e vontade, pode sorrir quando tudo corre bem ou sorrir mesmo quando as coisas correm mal, dai que lemos na Bíblia, “mesmo no riso o coração sente dor”.
Kiocamba, como quase todo o poeta angolano tem grande estima por Agostinho Neto e na sua poesia podemos notar alguma intertextualidade com o “poeta maior”. Não é por nada que mesmo antes das dedicatórias encontramos Neto. Ocorre-me agora o poema em Sagrada Esperança “Não me peças sorrisos... nem sorrisos nem glórias” apenas “num novo catálogo” “terei para ti/ os sorrisos que me pedes”. Porquê? Porque os sorrisos são ainda “escuros” diz o sujeito poético de Kiocamba e, estão no além. “Os sorrisos encostados nos tambores... os sorrisos plantados em terras que germinam ferros/ sorrisos ingratos... sorrisos das crianças chamadas culpadas/erguendo taças de feiticeiras inocentes/ aí buscarei os sorrisos inocentes”.pg 20,21
Chocamo-nos recentemente com este fenómeno aqui na nossa Mátria angolana, crianças acusadas de feitiçaria o que levantou diversas reacções da sociedade. As acusações de feitiçaria têm sido descritas, tanto por mais velhos e líderes das igrejas bem como pelo governo e ONGs, como resultado da desestruturação familiar ocasionada pela guerra e pela crise econômica e social. A grande maioria das crianças acusadas são órfãs de um dos pais ou ambos, ou filhos de pais separados, sendo acolhidas por parentes como tios ou avós, ou vivem com padrastos ou madrastas que muito frequentemente são os responsáveis pelas acusações. Elas carregam “sorriso incerto”, o poeta que dá voz aos sem voz escreve: “Sou criança anestesiada/nunca sorri sorrisos/sorri apenas ventos espalhados à tempestade...”
Os parentes das crianças não conseguem sorrir para elas, antes maltratam-nos. Só o poeta buscará “todos os sorrisos/ para unificar com os cânticos da... alma” e “amanhã... dar-te-ei um amanhã branco e risonho” diz o poeta e devemos imita-lo.
As “Zuzu” cansadas mulheres vendendo ao sol no espaço luandense, são as outras personagens que merecem nossos sorrisos de modo a ganharem alento para a vida. Quem sou eu? perguntarão elas e, o poeta dirá que “sou o nada vestido de nada” Leia-se o poema na pg 34.
“Perguntem às letras/ qual é o sentido da história/num olhar sereno/ uma decisão bruta na interrogação/ do orvalho matinal”. pg 25
A resposta virá do poeta que escreverá “um poema grosso” “um poema/tímido ou talvez sem expressão física/ onde os gemidos e os lamentos/ os cantares e as melancolias/ as incertezas e os passos brancos/farão parte das letras...” pg 29.
Prossigamos, pois ainda há “outros sorrisos nos nossos lábios” que o poeta pretende partilhar, ou melhor, narrar.
Somos agora convidados a saudar África que se despede dos sofrimentos passados:
“... Adeus África ontem/ então em altos brados gritemos/ saudemos África com cantos alegres/ ... saudemos África com sorrisos alegres/... sorri África conglomerada/ restitui a graça/ a mãe negra que canta/ África, África florida que encanta pg 46-49.
Este é o anseio do poeta que almeja a paz e justiça pois na realidade o poeta constata “em ti... terras vejo crianças sem rosto/comendo sorrisos de um soldado qualquer” nas “terras áridas do mal” Nesta hora o poeta convida-nos a “dançar rítmos selvagens/ ao som do batuque africano/ com mulalas à volta da cintura/... vem sorrir/ sorrisos expirados”. Devemos aceitar o convite para partilhar com o poeta que já cansado de ver tanta dor e angústia e não quer mais “cantar melodias estranhas/ para alegrar os estômagos dos famintos”. Estamos acompanhando as notícias, na Nigéria, na Somália etc. Só o “Grandioso” para ajudar e a Ele juntamente com o poeta buscaremos Alegrias, explicação, certeza e perfume para perfumar nossos dias sofridos, nossos dias de ilusões sufocadas. Pg 54, 55, 57
O poeta ama as mulheres e nelas vive pensando, até na “... mulher violada/ nos becos escuros... mulher que se prostitui/ para afugentar a miséria/... mulher que anuncia Cristo Salvador/... mulher que educa/ o analfabeto na sanzala/ penso em ti, com sorrisos nos lábios... penso em ti/ mulher de ancas malandras/ que seduz até o cego” (ver pg 66). Elas, são fonte de inspiração do poeta e Março o mês a elas dedicado e, neste mês “sorrisos largos no rosto da mulher/seus olhos são capazes de chorar/ a alegria verdejante do horizonte branco” pois “assim já é Março e as “zuzus” podem desfilar na calçada, pg75.
O poeta liricamente canta para a princesa cujo “cheiro do teu corpo embrulha o perfume/ das rosas e a chuva utópica que cai sobre os teus cabelos”. A música romântica e carinhosa dedica-se ainda a mulheres cujos nomes são-nos revelados como, Amélia da Lomba, Evandra dos Santos, a Ema Bica mulher dos olhos negros a quem o poeta “queria oferecer uma caixinha de sorrisos/ azuis brancos outros sem cores/ ouvir a sinfonia brotada dos ... lábios lisos” A elas o poeta pede carinhoso “declama um poema para mim meu amor” e Amélia acede ao pedido com o “som da sua voz meiga” “sobre o Sacrosssanto dos Refúgios e em Espigas do Sahel”. As mulheres, lindas elas, fisgam-nos mesmo no “primeiro olhar” “beleza esculpida/ moldagem esculpida do alto/ um só olhar/ um só gesto/ uma só palavra/ e no fundo do pensamento surge a interrrogação/ (?) do céu ou do ventre”. pg 88
...
Como dissemos inicialmente, encontramos elementos estéticos e efeitos estilísticos na poesia do Kiocamba que serve-se da palavra como o material para construir um objecto artístico. De tal modo ele desvia-se da norma padrão nos diversos níveis, isto é, no semântico, no fónico e no sintâctico. Isto garante musicalidade aos poemas, são efeitos extraídos da relação extrutural das palavras. Efeitos de semelhança, efeitos de insistência ou atenuação que tendem para o aumento de intensidade da expressão ou atenuando-a, encontramos ainda figuras que marcam uma sugestão de oposição resultando em efeitos de dissociação. Eis alguns exemplos:
Amanhã escreverei um poema
que possibilite viver
que facilite sofrer ou talvez sucumbir
ou talvez um poema triste
que me permita sorrir... pg 28
Notamos o paradoxo, poema triste que permita sorrir. Encontramos a assonância e a anáfora: “ ... do mais ideal/ do mais belo/ do mais rídiculo/ do mais certo” pg 26, “... na vitalidade dos jovens/ na ambição severa dos tigres/ na esperança vermelha/ na riqueza dos abutres” pg 53, “...um só olhar/ um só gesto/ uma só palavra” pg88. A aliteração “...suturam o pensamento ensaiado...” pg 75.
Apóstrofe ou Invocação “oh!/ intransigente violino” pg 38, “... Oh meu Senhor” pg 54. Paralelismo ou simetria:
“mulher que se prostitui
para afugentar a miséria
mulher que trabalha o sexo
para movimentar a boca” pg 66.

Personificação “...panelas gritam no além do mar” pg87. O poema da página 60 exemplo de interrogação e ainda a metáfora de simples descodificação “Será que o ponto mais alto da beleza feminina/ é a fonte escondida dos países baixos/ revestidos de relvas pretas...” As rimas, apesar de em número reduzido, estão lá na pg 40 lemos “...vai caminhando com os sentimentais/ teus amigos ideiais...”, na pg 43 “...não há carnaval sem cores/ (?) que sorrisos largos são esses/ no rosto da mulher com dores?” Na pg 43, “... o vermelho que se esqueça/ o vermelho que padeça” Na pg 76 e sintam o rítmo “... Pensamentos celestiais conclamam amargura/ que mergulha no desastre da queimadura...”
Eis a poesia sorridente de Kiocamba e concluímos dizendo que sorrir é o atestado de excelência que a alma concede ao momento, aos encontros que a vida nos proporciona e à própria vida. Venham dái outros sorrisos poéticos meu kamba.
Boa leitura (a vossa) estimados.

Nguimba Ngola
Na Mulemba waxa Ngola aos 16 de Janeiro de 2012, 02h31am

Referências:
1. - Crianças feiticeiras: reconfigurando família, igrejas e estado no pós-guerra angolano, por Luena Nunes Pereira. Alojado em http://www.scielo.br/scielo.php, consultado dia 15 de Janeiro as 23h40.
2. Outros Sorrisos nos Nossos Lábios – Kiocamba Cassua, Lev´Arte, Novembro 2011
3. Sagrada Esperança – Agostinho Neto, UEA 10 ed.
4. No amanhcer da Curva – Kudijimbe , UEA, 2003
5. http://educacao.aaldeia.net/importancia-sorriso/, Consultao aos 15 de Janeiro de 2012, 22 horas
6. http://www.cerebromente.org.br/n15/mente/sorriso1a.html, Consultado aos 15 de Janeiro de 2012, 23h30.

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