2.
Pontos
de partida
A
publicação, em Luanda, de uma curta série de relatos de Ras Nguimba Ngola
suscitou-me estas reflexões (Angola, 2014). O autor ainda não é considerado quando se fala em
literatura angolana, mas isso mesmo constitui mais um desafio.
Trata-se de
um livro despretensioso, que reúne os relatos eróticos da vida de um jovem, desde
a sua iniciação até à morte por ciúmes. O impulso erótico vai arrasando
conceitos e preconceitos, ultrapassando barreiras, atravessando casais e
virgens, panoramas mais e menos morais, mais e menos escondidos. Esse mesmo
percurso é o da descoberta de que a moralidade, ou a vida religiosa, são
válidas só quando resultam de uma vivência interior e que toda a vivência
interior se realiza naturalmente.
Gerais
A literatura
angolana, a exemplo de muitas outras ao redor dela (ou seja: no resto do
mundo), é uma literatura feita em rede. Se queremos compreender a específica
angolanidade literária e, simultaneamente, a literariedade angolana, teremos de
partir sempre da colocação, recolocação e releitura das obras respectivas (ou
que julgamos respectivas). Há uma extensa tessitura textual dentro da qual, com
a qual e partir da qual se criam relevos próprios que são as nossas obras. O
mundo, nesse aspecto, é um tapete que ainda não acabou de se tecer – e cresce
por dentro, insuflando-lhe por sopro alguma divindade as rugas localizadoras
que nos remetem para a mesma origem.
O modelo é
já antigo. As Encíclicas papais, por exemplo, formam-se de uma adequada
organização de citações de textos orientadores que nos conduzem à aplicação da
doutrina inspirada a cada questão temporal que suscita a referida encíclica.
As
Encíclicas guiam-se por textos canónicos, ou seja, aceites como faróis para
orientarem o nosso raciocínio na direcção correcta. A literatura, ou poesia
como prefiro chamar, a maior parte das vezes não faz isso. O seu cânone é de
gosto mas, pela peculiar sensibilidade artística, o gosto muda e, nos nossos
tempos, em velocidade acelerada.
Há uma
pergunta preguiçosa que sempre nos repete uma curiosidade incipiente: mas acha
mesmo que o autor faz isso tudo conscientemente? Eu não acho nada, não estou na
cabeça dele. Quando leio, vendo frases como e lá fora os cães,
recordo-me de uma série de textos onde li frases parecidas. A recordação
traz-me uma série de evocações. Um bom crítico, entre outras coisas, é uma
pessoa que tem muitas dessas recordações e repara na maioria dessas evocações.
E porquê? Porque elas são estímulos de leitura, que activam e orientam a
maneira como recebemos, interpretamos e saboreamos a poesia, ou literatura,
enfim, a arte verbal. A nossa função, de críticos, alicerça-se em grande parte
na nossa capacidade para percebermos como o texto funciona estimulado pela
memória dos textos que evoca. Muito provavelmente os autores fazem o mesmo tipo
de cálculos para perceberem que efeitos vão conseguir com o que escrevem. E
assim funciona o circuito literário.
A literatura
angolana, que já foi controlada por cânones ideológicos (que substituíam os
bíblicos na criatividade artística), está hoje muito mais livre de obrigações
de gosto e vai, gradualmente, se transformando e se diversificando. Por isso
ela precisa, cada vez mais, de críticos e autores com muitas leituras,
incluindo com conhecimentos de textos orais, para que possamos como os livros
que vão saindo podem interagir com os diversos leitores que temos.
É por estas
sendas que me parece valer a pena o prazer da leitura de textos novos de autores
ainda não consagrados. Um risco, sem dúvida, porque muitos deles não vão sequer
insistir (ou ser insistidos) e voltar a escrever ou publicar. Outros, por mais
que insistam, não têm mesmo jeito… mas alguns suscitam, sem dúvida, um trabalho
gratificante.
Concretamente, neste caso…
…a história pode começar um bocadinho mais atrás. Em 1956, Aimé Césaire
publica em Paris a “tragédia” E os cães deixaram de ladrar (Et les chiens se taisaient) – assim traduzido o título para português
em 1975, no ano em que a Diabril a verteu para a nossa língua comum, em Lisboa.
Em 1946 o poema, já longo, saíra numa primeira versão, uma espécie de poema
dramático, integrado no livro Les armes miraculeuses. Mas é a segunda versão que nos marca, a versão que fica
para a recepção como a ‘verdadeira’ e definitiva, já remexida para sair como
peça de teatro (a primeira das quatro que o autor publicou).
Ao lermos o título deste livro de contos eróticos de Ras Nguimba Ngola,
assalta-nos a memória a sombra de Césaire. Não sei se o autor pensou nisso mas,
para o contexto da recepção, menos importa. Importa que o primeiro texto,
depois do prólogo, começa por ‘ressuscitar Neto’, reforçando assim a memória da
literatura militante. Entre as duas evocações (Césaire e Neto) há citações de
Conceição Cristóvão e do próprio Ras Nguimba. Ambas as citações são de índole
erótica e é sintomático isso para um leitor informado, ou avisado.
Num momento, geralmente considerado decisivo, da Tragédia de Césaire,
quando a mãe do protagonista procura afastá-lo da determinação política,
diz-lhe: “eu sonhei com um filho para fechar os olhos de sua mãe”. Esta voz,
que parece a de um coro numa tragédia grega e acentua a sugestão
dramática, de medo ou mesmo terror, recebe uma resposta típica dos tempos da
poesia militante: “eu sonhei abrir sobre um outro sol os olhos dos meus
filhos”.
Além da clara reversão da retórica trágica em retórica militante, coloca-se
nessa breve confrontação um problema fundamental, no qual os críticos raramente
reparam (aliás, nunca os ouvi falar nisso): a da reprodução, a do sentido da
evolução. A referência ao(s) filho(s) na linguagem dos dois aponta claramente
para aí. Para que fazemos filhos? Para nos fecharem os olhos ou para
melhorarmos (transformarmos, diria Marx) as condições de vida?
Dando sinal da exacta colocação do livro na história urbana da semiosfera
angolana, duas citações eróticas de autores recentes, ou mais recentes
(reforçadas por várias outras ao longo do livro), são colocadas entre a
evocação de Césaire no título e a citação de Neto no início da estória. O livro
coloca-se desde logo, por essas inserções, no lugar dos tais filhos que
abririam os olhos para um novo sol. Os filhos (e particularmente o
protagonista) estão no momento da reprodução da espécie, no momento da
exaltação do sexo e do corpo, mesmo convivendo com a moral aparentemente
puritana várias vezes superada pelo desejo ao longo destes contos.
Este posicionamento não coloca já a mesma questão que definiu gerações
anteriores: que sol abrirá para os nossos filhos? Que mundo lhes legamos? Aqui,
aliás, não chega a haver questão, há só o desejo e a luta do desejo para a plena
realização, a qual não tem nada de extraordinário, de profético, de superior ou
transcendente, é como é. Tão natural, aliás, quanto a aspiração a superá-lo na
entrega mística.
Se lermos cuidadosamente a citação de Neto, ela nem é bem uma citação, antes
uma intertextualização que subverte o sentido político dos versos do poeta mais
velho e mostra precisamente isto que digo. Reproduzo aqui:
Ao passado
agora mesmo estou sendo levado, numa escura noite nos bairros escuros do
mundo sem luz… onde as vontades se diluíram e os homens se confundiram com as
coisas… ruas sem luz… de braços dados com fantasmas, ressuscitando Neto.
Duas meninas com beleza de invejar despontavam na Casa dos Sonhos.
As frases em
itálico são fragmentos do conhecido poema «Noite» de Neto. No novo contexto e com os cortes que foram
feitos, ilustram uma realidade cuja comparação com a antiga surpreende. O
esperado era que o novo sol afastasse as trevas, que as ruas tivessem luz, os
bairros populares fossem iluminados e os filhos da revolução jovens militantes
exemplares. Mas não se passa nada disso. O acontecido foi, no meio das ruas que
ainda continuavam sem luz, a aparição de “duas meninas com beleza de invejar” e
a desvelação erótica do protagonista.
Este é outro
mundo, outro ponto ancorado numa visão diferente (e posterior) do ‘processo
histórico’. É o mundo do desejo rompendo naturalmente os obstáculos, ou
corrompendo-os, roendo-os, mostrando a sua fragilidade, a contradição que
mantêm com o corpo e as energias básicas da vida. Um corpo sem cânones
respondendo aos cânones sem corpo manipulados pelas igrejas. Ao longo destas
estórias isso vai sendo superado, ao mesmo tempo em que se revelam as taras que
assaltam aqueles que se deixaram amarrar pelo falso conservantismo, pela
religião de fachada e regra.
O avanço da
personagem contra toda a peia de obstáculos à livre manifestação de amor e
desejo, que o levará inevitavelmente a uma simbólica morte (não há amor
sem morte), esse avanço está, como todo o livro, inserido numa teia de
frases, linguagens e retóricas na qual a sua colocação é sempre sintomática.
As citações,
para além das já nomeadas, incidem principalmente em poetas revelados em livro
sobretudo a partir do fim dos anos 80. Entre eles se destacam Conceição
Cristóvão (o mais requerido), Amélia Dalomba, “John Bella” e o próprio Nguimba.
Outras citações – como a de uma canção brasileira na voz de Fáfá de Belém.
A esfera de
referências literárias, é fácil de ver, já difere em muito dos autores
revelados ao longo da década de 80 do século passado. A sua temática difere
também, quase desaparecendo o motivo da guerra – ao contrário do que sucede,
por exemplo, nos contos de João Tala. Os tipos de personagens são bem actuais,
do quotidiano de uma cidade angolana de hoje, como sucede em grande parte com
outro escritor recente, Gociante Patissa.
A par de
todos estes ‘sintomas’ de uma mudança de paradigma numa nova geração e produção
literária em Angola, o da linguagem usada é dos mais importantes.
3.
Linguagem
A linguagem
poética dos autores novos (então), revelados ao longo dos anos 80, era muito
marcada, na maioria dos casos, por um trabalho artístico intenso sobre a linguagem.
Daí resultava um discurso literário mais denso, principalmente na poesia
lírica. O discurso necessário para superar, naquele instante, a redundância da
poesia militante, já desfasada em relação a tudo o que se fazia no mundo.
Saíram, desse propósito de intensificação estética, poetas de gabarito
universal – o que prova, a posteriori, que foi a reacção certa no
momento certo.
A narrativa
continuava a recorrer a uma linguagem menos densa, mas ainda assim animada por
jogos de palavras, metáforas, soluções frásicas e imagens colhidas no falar
quotidiano de Luanda. As excepções vinham, principalmente, dos que viviam fora
do país. Em particular do então jovem Sousa Jamba. Sousa Jamba foi, naquele
momento, a própria excepção: saído das zonas sob controlo da UNITA, educado na
Zâmbia, jornalista em Londres, publicou o seu grande livro até hoje – Patriots – em inglês e só mais tarde a obra foi traduzida para a
língua comum. Diferença total com os restantes jovens escritores angolanos da
época.
A excepção
Sousa Jamba constituiu uma surpresa e levou a que, durante muito tempo, fosse
ignorado (oficialmente) em Angola. Mas o seu romance continha características,
em particular ao nível da linguagem, que se revelaram precursoras. Não era só
um romance de paz e para a paz em plena guerra. Não era só o modelo narrativo
diferente (mais próximo do jornalismo de reportagem e das autobiografias de
jovens escritores africanos anglófonos). Era também a linguagem literária de Patriotas, que se caracterizava pela nitidez, pela
limpidez, pela simplicidade e pela acutilância.
São estas
características que reencontramos hoje, não só, mas nomeadamente na lírica e
nos contos de Gociante Patissa, bem como nestes contos de Ras Nguimba Ngola.
A par dessa
característica, indissociável dela, surge outra: a de um domínio seguro do
português. A linguagem poética dominante desde o Luuanda de Luandino mostrava um domínio superior, também, da
língua portuguesa – o domínio necessário para poder permeá-la com o português
de musseque, ligando as duas pontas através de semelhanças estruturais, ou
através de simples imitação de termos e frases populares.
Nos livros
iniciais dos escritores de que falo agora encontramos o contrário: como em
Sousa Jamba, há só o domínio do português, reflectindo-se num discurso
translúcido, aparentemente sem espessura, fílmico. Uma ou outra analogia de
vasto alcance pontua de longe em longe a paisagem verbal (já quase no fim: “fugi
do local à velocidade de um tiro” – p. 81). Raras, elas mostram o comedimento
da nova linguagem – que alguns autores mais antigos praticaram (lembro-me de
Augusto Bastos, de Assis Júnior, de algumas curtas estórias de Domingos
Van-Dúnem, de outras publicadas no Boletim da LNA nos anos 30 e
princípios de 40, dos contos de Dario de Melo, mas há mais, que não me ocorrem
agora). Face ao espalhafato que exibem os epígonos dos anos 80, não deixa de
ser saudável este retorno à simplicidade. Como um retorno aos caminhos do
campo… mas, nem por isso, ao espalhafato folclórico da imitação desenfreada de
termos populares, uma imitação macaqueada do trabalho de escritores do quilate
de Luandino Vieira ou Boaventura Cardoso. Aqui os termos próprios da fala de
Luanda, sobretudo de nível popular, aparecem naturalmente integrados na prosa
como, no dia-a-dia, costuma acontecer. Ou seja: não resultam de um esforço de
inserção, simplesmente fazem parte da linguagem quotidiana de quem escreve e,
por isso, entram ali. Já em Carmo Neto, aliás – um contista bem mais dedicado
às metáforas – podíamos ver o mesmo.
A beleza,
naturalmente, encontra-se em qualquer das duas linguagens, com
fogos-de-artifício ou sem eles. A beleza não deriva directamente do uso de uma
espécie particular de linguagem, mas da combinação própria de todos os
elementos passíveis de recurso artístico numa mesma obra, num mesmo conjunto.
Portanto, deixemos a beleza lá onde ela está e vejamos uma parte dela: os
desafios que um livro de contos nos pode lançar. Aliás é de notar que, a par
deste retorno à limpidez da linguagem, a poesia angolana continua a aprofundar
o seu espírito de vanguarda, por exemplo nas experiências poéticas
vanguardistas de Abreu Paxe. E isso resulta tão belo como o contrário, o que
devia fazer pensar aqueles que confundem traços estilísticos e retóricos de uma
época e construção do efeito de beleza.
4.
Personagem
e estrutura da estória
A personagem
de E lá fora os cães… é também sugestiva. Desde logo para o nosso
historial poético-literário. Ela tem qualquer coisa de João Vêncio: o corpo, o desejo, soltos realizando-se em outros corpos alheados das
convenções. Mas é uma personagem própria dos tempos actuais em Angola.
Envolve-se com pessoas ligadas a seitas, está muito convencido da sua
virilidade, ouve músicas e lê poemas de hoje, dá-se com pessoas que podemos
encontrar nas ruas a qualquer momento.
Não é,
também – como não foi João Vêncio – uma personagem plana ou resumida a um tipo. Há densidade psicológica na
sua constituição, abriga as contradições que qualquer um de nós abriga, hesita,
foge, duvida, vai, deixa-se levar, finta.
Não é também
uma personagem pintada com traços breve – como não foi João Vêncio. A linguagem
de João Vêncio definia-o, juntamente com as suas acções e memórias. Neste caso,
estamos perante uma caracterização principalmente indirecta, de quando em
quando uma auto-caracterização, deduzindo-se pelos seus actos e pelas suas
decisões o tipo de carácter que define o protagonista.
O desenrolar das peripécias forma a intriga, a estrutura da estória. Pena
que princípio e fim de cada episódio nem sempre fiquem bem definidos
graficamente.
É no final
do último episódio que se faz a profecia do final do livro: o encontro com uma
antiga amante cujo namorado, sabendo-se traído, ameaça o protagonista.
Bruscamente,
a página seguinte abre com alguém deitado (um editor? Um assessor editorial?)
deitado numa clínica reflectindo sobre se deve publicar o manuscrito do jovem
assassinado, encontrado “morto na sua cama”. O autor aproveita o quadro para
colocar na voz do pretenso editor, a pensar em primeira pessoa, o julgamento
estético da obra:
Eu sou criticado pelo rigor, mas não vale a pena fazer lixeiratura […/…] do
ponto de vista estético não deixa a desejar, a leitura comoveu-me e nada mais
de arrumações, eis o livro que deverá falar por si, um livro de memórias
eróticas.
Francisco Soares